sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Análise de Principia, de Emcida

 





O Contexto do Álbum AmarElo

O disco AmarElo se propõe a resgatar o amor e a ancestralidade, incorporando diversas referências, mas sem negligenciar a violência sofrida pelo povo não branco. A obra de Emicida contribui para uma compreensão da importância do povo não branco na criação das brasilidades.

Emicida busca afastar o rap do estereótipo que o associa (e às pessoas pretas) apenas à raiva e à pobreza, afirmando que, em AmarElo, o gênero "foge desse espectro previsível do que o rap pode ser". O álbum dialoga com a ética do amor de bell hooks (conforme Tudo sobre o amor), que o vê como prática política e trabalho. Emicida reterritorializa essa ética no Brasil, utilizando o rap, o samba, as religiões afro-brasileiras e a cultura periférica como uma rede de referências que legitima o amor como insurgência de povos não brancos. O nome do álbum também faz referência ao poeta curitibano Paulo Leminski.
O álbum "AmarElo", de Emicida, rompe estereótipos do rap ao expandir os temas tradicionais do gênero, focando na celebração da ancestralidade, do afeto e da resistência negra, e ao fundir o rap com outros gêneros musicais, como o samba e o pop. O que é dado às pessoas não brancas é um senso de protagonismo, empoderamento e validação cultural. 
Como "AmarElo" rompe estereótipos do rap
Ampliação temática: Enquanto o rap frequentemente aborda a denúncia direta da violência e do racismo (o que Emicida também faz), "AmarElo" inova ao trazer para o centro do discurso temas como a saúde mental, a paternidade, a espiritualidade e as relações interpessoais. Ele desafia a ideia de que o rap deve se limitar a narrativas de sofrimento, introduzindo a perspectiva do afeto e da felicidade como atos de resistência.
Mistura de gêneros: O álbum quebra barreiras musicais ao incorporar elementos de samba, MPB e pop, incluindo parcerias inusitadas, como com Pabllo Vittar, Majur e até a inclusão da voz de Belchior. Isso contesta o purismo de gênero e mostra a versatilidade do rap como uma plataforma para a música brasileira em geral, e não apenas para um nicho. Inclusive o nome do álbum foi tirado do poema de Paulo Leminski:

Resgate histórico e cultural: Emicida utiliza o álbum e o documentário a ele associado ("AmarElo - É Tudo Pra Ontem") para educar sobre a história negra no Brasil, destacando a agência e o protagonismo de figuras e movimentos negros que foram apagados da narrativa histórica oficial. 
E o que é dado às pessoas não brancas
O projeto "AmarElo" oferece às pessoas não brancas, especialmente a população negra, elementos cruciais para a construção da identidade e do empoderamento:
Protagonismo e visibilidade: O álbum coloca as pessoas negras como protagonistas de sua própria história e emancipação, não como vítimas passivas. Reivindica espaços de validação cultural (como o Teatro Municipal de São Paulo, cenário do show/documentário) que historicamente lhes foram negados.
Empoderamento e encorajamento: A obra funciona como uma "pedagogia cultural de resistência", oferecendo refúgio, superação e encorajamento para indivíduos que vivem nas periferias e enfrentam o racismo estrutural. A mensagem central é de união e força coletiva: "tudo o que 'nóis' tem é 'nóis'".
Afetividade e humanidade: Emicida enfatiza a importância do carinho, da sensibilidade e das relações afetivas, desconstruindo estereótipos que reduzem pessoas negras a características simplificadas ou à dor constante, e reforçando sua humanidade plena.
Reconexão com a ancestralidade: O rapper promove uma reconexão com as raízes africanas e a ancestralidade, mostrando que há uma história rica e digna de ser celebrada, que serve de base para o futuro. 
Em suma, "AmarElo" oferece uma narrativa de esperança, pertencimento e valorização da cultura e da vida negra, desafiando o ódio e a intolerância com uma mensagem de amor e resistência. 

A Função Hermenêutica de "Principia"
"Principia é a primeira música do disco AmarElo" e funciona como a chave hermenêutica do álbum.
Hermenêutica é a arte ou ciência da interpretação de textos, buscando esclarecer e revelar o sentido de algo que pode ser uma lei, um texto religioso, uma obra filosófica ou até mesmo a existência humana. Derivado do grego e associado ao deus Hermes, a hermenêutica lida com o processo de tornar uma mensagem ou um fenômeno compreensível. Ela não busca apenas uma interpretação única e final, mas sim um processo contínuo de análise e compreensão. 
• Fundamento e Início: O título, derivado do latim ("inícios, fundamentos"), anuncia um manifesto.
• Chave de Leitura: Permite ler o Brasil pelo prisma do afeto que tem o poder de reorganizar vínculos e desarmar a lógica do descarte.
• Manifesto do Amor: A faixa abre o álbum como um prólogo ritual, sendo a porta de entrada para uma ética do amor que atravessa todo o disco. Seu manifesto é que recomeçar não significa esquecer a dor, mas reconduzi-la por meio da memória, da ancestralidade e do cuidado coletivo.
• Pacto com o Ouvinte: A música institui um pacto de que o rap pode ser bênção, abraço e futuro sem ter que abdicar da crítica social.
• Estrutura do Álbum: Ao assinar esse contrato (o amor como prática), "Principia" estabelece o horizonte comum que permite que faixas posteriores, como “Eminência Parda” e “9nha”, possam descer às zonas de fratura da sociedade. A música é vista como um convite ("comecemos juntos"), menos como uma "tese fechada".

"Principia" se organiza poeticamente como uma oração/bênção. O resultado é um rap-oratório, que une o registro coloquial do rap a um registro cerimonial (quase homilético), criando uma estética de acolhimento.
"Homilético" é um adjetivo que se refere à arte e prática da pregação religiosa, especialmente de sermões, e à disciplina que estuda essa prática. Refere-se à composição, organização e entrega de discursos religiosos, com o objetivo de comunicar uma mensagem de forma clara e eficaz aos ouvintes. 
  • Forma e Voz: Caracteriza-se por uma cadência litúrgica e um ritmo de ladainha. As frases são construídas em tom de invocação e desejo (atos de fala performativos, como "que..." e "que seja...").
A organização poética se aproxima de uma oração/benção: há cadência litúrgica, frases em tom de invocação e desejo (atos de fala performativos, do tipo “que…”, “que seja…”), repetição anafórica e ritmo de ladainha. Emicida funde registro coloquial do rap com um registro cerimonial, o que desloca expectativas sobre “o que o rap pode ser”. O resultado é um rap-oratório: uma estética de acolhimento que prepara o corpo para ouvir.
  • Estrutura de Rito: A canção segue uma estrutura clara de rito
Principia mistura poesia, rap, canto popular e pregação que apresenta estrutura de rito: abre com mantra, segue com versos, fecha com sermão.
    • Abertura: Inicia com o canto repetitivo, quase mantra, das Pastoras do Rosário ("Lá-ia, lá-ia..."). Essa abertura remete à tradição afro-brasileira do congado e do Rosário, estabelecendo um clima de rito coletivo e espiritual.
    • Versos: Segue com os versos de Emicida.
    • Fechamento: Termina com o sermão do Pastor Henrique Vieira.

  • Som e Prosódia: A base musical é sóbria, com respiros que realçam a palavra. A prosódia de: 
    • Amor = atitude, decisão, espiritualidade, reparação.
    • Ubuntu e emancipação: comunhão entre indivíduos e povos.
Principia é uma mistura cultural e religiosa, alternando a enunciação calma com subidas afetivas, como se estivesse conduzindo um rito. O efeito é de comunhão, onde a voz fala com o ouvinte, não para ele.


Temas e Retórica

Os principais temas evocados na canção são:

  • Amor como potência transformadora: Visto como forma de cura, solidariedade e resistência, e não apenas no sentido romântico simples. O amor é um gesto cotidiano, aparecendo como ação prática: abraço, sorriso, gentileza. A música se define como uma "semente" (arte como início da transformação).
  • Espiritualidade: Referências a rituais, símbolos de fé, ancestralidade e busca de sentido. 
  • Denúncia/crítica social: Menciona as violências, desigualdades e estigmas sofridos por pessoas não brancas. O Brasil é retratado como "terra que é casa da cana de açúcar", um espaço de exploração histórica, e há a denúncia do racismo estrutural (ser negro = ser suspeito).
  • Autoconhecimento e cura: Entender quem se é e de onde se veio ajuda a enfrentar traumas e construir um futuro diferente.
Recomeçar não é esquecer a dor, mas reconduzi-la por meio da memória, da ancestralidade e do cuidado coletivo. 

A retórica é crucial para organizar o sentido:

  • Anáfora: A repetição estratégica (como no refrão "Tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis") cria um mantra com efeito hipnótico e comunitário. O refrão é uma síntese poética de Ubuntu em português, reafirmando a coletividade negra e periférica como suporte diante da exclusão social.
  • Paralelismo: Encadeia imagens de cura e organiza uma ética (amar, cuidar, insistir).
  • Antítese: Utiliza oposições como vida/morte, ódio/amor, medo/coragem. A canção não nega a violência, mas a inclui para convertê-la em projeto de sobrevivência partilhada. O eu lírico critica o ódio, dizendo que crer que o ódio é a solução é "ser sommelier de anzol" (apegar-se ao que aprisiona)

Núcleos Imagéticos

A letra trabalha com três núcleos imagéticos principais:

  • Luz/começo/caminho: Vocabulário de amanhecer, abrir trilhas e "começar de novo". A luz não apaga a noite, mas a atravessa.
  • Corpo ferido/cuidado: Dor e luto aparecem, mas são retrabalhados pelo gesto comunitário (mão que ergue, colo que acolhe). O amor surge como prática concreta (disciplina, escolha, responsabilidade)
  • Ancestralidade/pertencimento: Reforça a presença dos "nossos" e dos que vieram antes, pensando o tempo como espiral onde o passado ferido leva à invenção de futuro afro-diaspórico.

O Tema da Ancestralidade

  • A ancestralidade é trabalhada como um pilar de força, identidade e uma resposta direta à violência e ao apagamento histórico.   
  • Fundamento da Resistência: A canção fala de ancestralidade e de apoiar uns aos outros, sugerindo que a força coletiva vem da conexão com aqueles que vieram antes.
  • Reconhecimento e Resgate Histórico: A presença das Pastoras do Rosário e a referência a figuras históricas servem para resgatar a dignidade e a importância da população negra na formação do Brasil, o que combate a invisibilidade imposta pelo racismo. 
  • União e Humanidade: A mensagem central da música e do álbum é que "tudo que nóiz tem é nóiz". A ancestralidade é o alicerce que permite à comunidade negra se unir e resistir. Emicida devolve a humanidade a milhões de jovens negros que nunca se viram representados positivamente, mostrando que eles têm uma história rica e digna de orgulho.

A Violência às Pessoas Não Brancas
  • A violência é retratada como um elemento estrutural e cotidiano na vida da população negra.
  • Denúncia do Racismo Estrutural: A letra aborda diretamente as questões sociais e a realidade do racismo no Brasil. Emicida expõe como a sociedade marginaliza e violenta corpos negros, fazendo um alerta de que o racismo é "latente" e onipresente.


O Sermão e o Amarelo: O Pastor Henrique Vieira conclui o rito, questionando a brevidade da vida. Ele afirma que tudo seria em vão "se não fosse o amor". O amor é definido como decisão, atitude, espiritualidade e o "segredo de tudo". Ao descobrir esse elo, o eu lírico afirma que pinta tudo em amarelo.

  • Tema central: a consciência da finitude e a descoberta do amor como sentido
    • O texto começa e termina com a mesma inquietação: “Vejo a vida passar num instante / Será tempo o bastante que tenho pra viver?” — uma pergunta existencial que remete à finitude humana, à incerteza do futuro e à precariedade da existência.
    • A vida é descrita como algo fugaz, que escorre pelas mãos. A pergunta “quem segura o dia de amanhã?” aponta para a impotência humana diante do tempo. Essa angústia, porém, não se resolve no vazio: encontra razão no amor, que surge como resposta, antídoto e sustentação.
    • O texto constrói a ideia de que, se a vida é breve, o amor é o que lhe dá densidade.

  • O amor como força estruturante do texto
    • Aqui, o amor não aparece como sentimentalismo, mas como decisão, atitude, vínculo, perdão, reparação, espiritualidade além das religiões.
    • O amor é apresentado quase como um princípio metafísico, um fundamento do ser, “tão antigo quanto a eternidade”. É uma força que reconcilia, resgata dignidade, cura conflitos familiares, sustenta o humano em sua fragilidade.
    • O verso “o amor é amarelo” é simbólico: o amarelo é a cor do sol, da luz, da energia vital. Representa cura, iluminação, esperança — uma espécie de “aura” da espiritualidade humana.
  • Perspectiva filosófica
    • O texto dialoga com:
    • existencialismo → a vida é incerta, mas encontra sentido no agir.
    • espiritualidade universalista → o amor não está preso a dogmas.
    • ética do ubuntu → “sou porque somos”, reforçado no final.
    • Há busca de comunhão, de unidade, de re-ligação — religar o humano ao outro, ao mundo, a si mesmo.
  • Humanidade, fragilidade e reconciliação
    • Há uma bela passagem sobre fragilidade:
“Eu o miro, de frente, na minha fragilidade
 Eu não tenho a bolha da proteção” 
 
Aqui, a voz poética assume sua condição vulnerável e, ao fazê-lo, encontra força no amor e no vínculo com o outro.
    • Os versos sobre família, perdão e paz ancoram a espiritualidade num cotidiano possível, prático.
"Filho, abrace sua mãe
 Pai, perdoe seu filho
 Pais é reparação, fruto de paz"
  • O ubuntu como ápice da revelação
    • “Ubuntu” — filosofia africana que afirma:
“eu sou porque nós somos”
 identidade construída na relação

O texto evolui da incerteza individual à construção de um “eu” coletivo, expandido. A espiritualidade aqui é comunitária, horizontal, solidária.

A vida deixa de ser um instante que escapa e se torna um espaço de comunhão.

  • A imagem final: tudo pintado de amarelo
Essa é a síntese poética:

Se o amor é o segredo,
Se o amor é amarelo,
e se “eu pinto tudo em amarelo”,

então a existência inteira é reinterpretada pela lente do amor.

  • É um gesto artístico e existencialele remodela o mundo pela cor daquilo que dá sentido à sua vida.


Política do afeto

A canção combate o estereótipo do rap como “puro rancor” ao propor alegria radical e cuidado sem neutralizar o conflito. É uma política do cotidiano: cozinhar, criar filhos, estudar, cantar, lembrar os mortos — tudo isso vira revolucionário quando a sociedade insiste em desumanizar. 

ternura, aqui, não é docilidade: é método de sobrevivência.

Como abertura, “Principia” assina o contrato: depois dela, faixas como “Eminência Parda”, “9nha”, “AmarElo” podem descer às zonas de fratura sabendo que há um horizonte comum — o amor como prática. Por isso, a música é menos “tese fechada” e mais convite: “comecemos juntos”.



Análise da letra

Abertura ritual (Pastoras do Rosário)

  • “Lá-ia, lá-ia…” →canto repetitivo, quase mantra.
  • Remete à tradição afro-brasileira do congado e do Rosário.
  • Estabelece clima de rito coletivo, que prepara o ouvinte para uma experiência espiritual.
"Com o cheiro doce da arruda  
Penso em buda, calmo

A arruda simboliza principalmente proteção espiritual, sendo usada para afastar energias negativas, como inveja e mau-olhado, além de ter significados de purificação e cura. 

Tenso, busco uma ajuda
Às vezes me vem um salmo (referência às religiões cristãs)

Tira a visão que iluda, é tipo um oftalmo (A voz que canta enxerga além das ilusões
E eu, que vejo além de um palmo             do mundo)

Por mim, tu, Ubuntu, algo almo (significa que alimenta, nutre ou cria)
Se for pra crer no terreno
Só no que nóis tá vendo memo (Reforça a  ideia de uma visão se ilusão)

Resumo do plano é baixo, pequeno (Os versos representam a população não
Mundano, sujo, inferno e veneno       branca e a voz do opressor/ racista)
Frio, inverno e sereno  (Representa o desamparo e a solidão)
Repressão e regressão (Sintetiza a ação violenta do Estado e da sociedade e o                                              impedimento de crescimento social dos não brancos.

É um luxo ter calma, a vida escalda (Calma é um luxo para quem a vida massacra)
Tento ler almas pra além de pressão (repete a ideia de uma visão mais ampla)
Nações em declive (comunidades e populações marginalizadas)
na mão desse Barrabás (representação simbólica do sistema (político, econômico e social) que oprime)
Onde o milagre jaz (Não há ou os milagres morreram)

Só prova a urgência de livros (A Educação como Ferramenta de Poder)
Perante o estrago que um sabre faz (metáfora para a violência armada, a força bruta, a repressão policial)

Imersos em dívidas ávidas  (endividamento)
Sem noção do que são dádivas (presentes, ofertas, doações ou graças que são dadas de forma espontânea e voluntária)

No tempo onde a única que ainda  (os versos reafirmam a dor - física, psicológica,  
corre livre aqui são nossas lágrimas social - que atingem as populações periféricas)

E eu voltei pra matar, tipo infarto
Depois fazer renascer, estilo um parto
(A linguagem é forte e violenta, mas no sentido metafórico. Emicida não está falando de violência física, mas de "matar" o status quo, as expectativas limitadas, o sistema opressor ou a versão anterior de si mesmo que aceitava passivamente as injustiças. O "infarto" sugere algo súbito, inesperado e fatal para a ordem estabelecida)

Eu me refaço, farto, descarto (Ideia de renovação, cheio de conhecimento e descartando as amarras)

De pé no chão, homem comum  (Humildade e Conexão com as Raízes)
Se a bênção vem a mim, reparto  (Generosidade e Coletivismo)
Invado cela, sala, quarto  (Onipresença da Arte e da Mensagem)
Rodei o globo, hoje tô certo de que
Todo mundo é um (Após viajar o mundo e ver diferentes realidades, Emicida chega à conclusão de que as divisões raciais e sociais são construções artificiais)

Refrão coletivo: "Tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis.” 
                          [Emicida e Pastoras do Rosário]
  •  Refrão repetitivo, coral, enfatiza coletividade e solidariedade.
  •  Reafirma a comunidade negra e periférica como suporte diante da exclusão social.
  •  É uma síntese poética de Ubuntu em português.
  • Ubuntu é uma palavra existente nas línguas zulu e xhosa, faladas na África do Sul, que exprime um conceito moral, uma filosofia, um modo de viver que se opõe ao narcisismo e ao individualismo tão comuns em nossa sociedade capitalista neoliberal.
[Emicida]
Cale o cansaço, refaça o laço
Ofereça um abraço quente
A música é só uma semente
Um sorriso ainda é a única língua que
todos entende
Cale o cansaço, refaça o laço
Ofereça um abraço quente
A música é só uma semente
Um sorriso ainda é a única língua que
todos entende

  • O amor não é abstrato→ aparece como ação prática: abraço, sorriso, gentileza.
  • A música se define como “semente”→ arte como início de transformação.
  • Poética da simplicidade: um sorriso é linguagem universal.

(Tio, gente é pra ser gentil)
Tipo um girassol, meu olho busca o Sol
Mano, crer que o ódio é a solução
É ser sommelier de anzol
Barco à deriva, sem farol
Nem sinal de aurora boreal
Minha voz corta a noite igual um rouxinol
Meu foco de pôr o amor no hall

  • Girassol e crítica ao ódio - O girassol simboliza busca pela luz, esperança.
  • Crítica ao ódio: “ser sommelier de anzol” = apegar-se ao que aprisiona.
  • Barco à deriva, sem farol/ Nem sinal de aurora boreal = se perder ou estar perdido
  • O eu lírico se coloca como rouxinol: voz noturna que canta esperança e o amor.

[Fabiana Cozza]
Tudo que bate é tambor
Todo tambor vem de lá
Se o coração é o senhor, tudo é África
Pus em prática
Essa tática
Matemática, falou?
Enquanto a terra não for livre, eu também não sou
Enquanto ancestral de quem tá por vir, eu vou
Cantar com as menina enquanto germina o amor
É empírico, meio onírico, meio Kiriku, meu espírito
Quer que eu tire de tu a dor

Fabiana Cozza: África como origem
  • Reforço da ancestralidade africana como raiz da música e da vida.
  • A canção liga espiritualidade, resistência e tradição oral afro-diaspórica.
  • Kiriku(herói infantil africano)→ referência cultural que mistura mito e infância.

[Emicida]
É mil volts a descarga de tanta luta
Adaga que rasga com força bruta
Deus, por que a vida é tão amarga
Na terra que é casa da cana de açúcar?
E essa sobrecarga frustra o gueto
Embarga e assusta ser suspeito
Recarga que pus, é que igual Jesus
No caminho da luz, todo mundo é preto
Ame, pois
Simbora que o tempo é rei
Vive agora, não há depois
Ser tempo da paz, como um cais que
vigora nos maus lençóis
É um-dois, um-dois, longe do playboy
Como monge sois, fonte como sóis
No front sem bois, forte como nós

Luta e resistência
  • O Brasil (terra da cana) como espaço de exploração histórica.
  • Denúncia do racismo estrutural: ser negro = ser sempre suspeito.
  • Afirmação identitária: “No caminho da luz, todo mundo é preto.”

Tempo e urgência
  • Trecho: “Simbora que o tempo é rei, vive agora, não há depois…”
  • Mensagem de carpediem → urgência de viver e transformao presente.
  • O tempo é autoridade maior, mas pode ser reconfigurado pelo amor.

Emicida orienta o ouvite:
  • "É um-dois, um-dois, longe do playboy" é a contagem clássica usada por MCs para testar o microfone ou ditar o beat. É um lembrete de onde Emicida vem: a cultura hip-hop, a base, a periferia.
  • Foco e Disciplina: "Como monge sois".
  • Front representa trabalho e dia-a-dia, mas tem que ser com inteligência.

[Pastor Henrique Vieira] 
Vejo a vida passar num instante
Será tempo o bastante que tenho pra viver?
Não sei, não posso saber
Quem segura o dia de amanhã na mão?
Não há quem possa acrescentar um milímetro a cada estação
Então, será tudo em vão? Banal? Sem razão?
Seria, sim, seria se não fosse o amor
O amor cuida com carinho, respira o outro, cria o elo
No vínculo de todas as cores, dizem que o amor é amarelo
É certo na incerteza
Socorro no meio da correnteza
Tão simples como um grão de areia
Confunde os poderosos a cada momento
Amor é decisão, atitude
Muito mais que sentimento
Alento, fogueira, amanhecer
O amor perdoa o imperdoável
Resgata dignidade do ser É espiritual
Tão carnal quanto angelical
Não tá no dogma, ou preso numa religião
É tão antigo quanto a eternidade
Amor é espiritualidade
Latente, potente, preto, poesia
Um ombro na noite quieta
Um colo para começar o dia
Filho, abrace sua mãe
Pai, perdoe seu filho
Pais é reparação, fruto de paz
Paz não se constrói com tiro
Mas eu o miro, de frente, na minha fragilidade
Eu não tenho a bolha da proteção
Queria guardar tudo que amo
No castelo da minha imaginação
Mas eu vejo a vida passar num instante
Será tempo o bastante que tenho para viver?
Eu não sei, eu não posso saber
Mas enquanto houver amor
Eu mudarei o curso da vida
Farei um altar para comunhão
Nele eu serei um com o mundo
Até ver o ubuntu da emancipação
Porque eu descobri o segredo que me faz humano
Já não está mais perdido o elo
O amor é o segredo de tudo
E eu pinto tudo em amarelo

  • Amor = atitude, decisão, espiritualidade, reparação.
  • Ubuntu e emancipação: comunhão entre indivíduos e povos.


QUESTÕES
1) Principia
Tudo que bate é tambor
Todo tambor vem de lá
Se o coração é o senhor, tudo é África
Pus em prática
Essa tática
Matemática, falou?

EMICIDA Principia (part. Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira e Pastoras do Rosário). São Paulo: Sony Music Laboratório Fantasma: 2019.


O uso da pontuação e da fragmentação sintática nesse trecho contribui para

a) desviar o foco do eu lírico, apagando a subjetividade em favor de um discurso impessoal e lógico.

b) produzir um efeito de oralidade e de ritmo, aproximando o discurso poético da linguagem falada e do improviso.

c) organizar uma sequência explicativa contínua, com orações subordinadas que seguem a norma culta padrão.

d) tornar o enunciado hermético e elitizado, distanciando o leitor das referências culturais afro-brasileiras.
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2) Na música "Principia", a linguagem simples e afetiva mobiliza aspectos culturais que ultrapassam o plano estilístico. A escolha por esse tipo de linguagem tem como principal objetivo

a) adaptar o uso da língua a práticas sociais baseadas no afeto e na partilha simbólica.

b) priorizar o uso de estruturas formais da norma culta para valorizar a tradição poética. 

c) reproduzir um discurso padronizado para favorecer a circulação em mídias institucionais.

d) construir uma linguagem neutra e impessoal que mantenha distância emocional do público.
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3) Ao explorar múltiplas linguagens em seu experimento social AmarElo, Emicida propõe

a) uma busca por legitimação estética no circuito acadêmico, adotando uma linguagem técnica que limita o alcance popular da obra.

b) um discurso predominantemente autobiográfico, centrado em experiências individuais do artista.

c) uma estratégia discursiva multilinguística e midiática, promovendo o diálogo entre memórias coletivas, identidade negra e engajamento social.

d) a desconstrução da arte como prática comunicativa, priorizando experiências abstratas e experimentais.
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4) Na canção "Principia", a repetição de "Tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis"

a) esvazia o conteúdo, indicando que o eu lírico está descrente do coletivo.

b) usa "nóis" como desvio que enfraquece a identidade da canção.

c) sugere crítica ao individualismo urbano, mas sem reforço poético claro.

d) reforça afetivamente a coletividade como resistência simbólica da periferia.
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5) No trecho "A música é só uma semente / Um sorriso ainda é a única língua que todos entende", Emicida trabalha com imagens que ultrapassam a função referencial da linguagem e refletem sobre o papel da arte na construção de vínculos humanos.

A respeito do uso de recursos metalinguísticos e da seleção lexical, assinale a alternativa correta.

a) A metáfora da música como "semente" expressa a limitação da arte, que depende de outros fatores para florescer, mas o verso não apresenta recurso metalinguístico.

b) Ao tratar da música como "semente", o eu lírico metaforiza o caráter disseminador da arte, e a menção ao "sorriso" evidencia uma linguagem universal, marcada pela afetividade.

c) A imagem do "sorriso" como língua universal sugere a ineficácia da música como linguagem, já que só o gesto é plenamente compreendido.

d) A ideia de "semente" remete à natureza da música como bem material, sendo um recurso lexical literal, e não simbólico.
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6) O encerramento de "Principia" - "Vejo a vida passar num instante / Será tempo o bastante que tenho pra viver?" - retoma o ponto de vista do eu lírico, que recorre a uma pergunta retórica para refletir sobre o tempo, o sentido da vida e a finitude. A respeito dos recursos enunciativos empregados, assinale a alternativa correta.

a) A pergunta retórica enfraquece o tom do discurso, revelando um eu lírico apático.

b) O trecho sugere um deslocamento da subjetividade para a impessoalidade institucional da crítica social.

c) O uso da primeira pessoa e da interrogação confere pessoalidade, aproximando o ouvinte da inquietação existencial do eu lírico.

d) O questionamento final indica que a canção abandona o tema do amor e passa a tratar exclusivamente da passagem do tempo.
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7)  Em "Principia", a alternância entre diferentes vozes, como Emicida, Fabiana Cozza, as Pastoras do Rosário e o pastor Henrique Vieira, não é apenas estética, mas também simbólica. Sobre os efeitos expressivos dessa variação de timbres e intensidades na construção da ambiência da canção, assinale a alternativa correta.

a) A intensidade da música se mantém constante, contribuindo para um tom meditativo uniforme.

b) O timbre das Pastoras do Rosário é mais agudo que o do Pastor Henrique Vieira, criando contraste.

c) A alternância de timbres e intensidades constrói climas variados, do contemplativo ao impositivo.

d) Emicida mantém um único padrão de intensidade vocal, reforçando a neutralidade do discurso.
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8) Mais do que uma gravação, "Principia" foi pensada como experiência coletiva. A performance da canção em espaços como o Theatro Municipal amplia o seu sentido e reforça seu caráter político. Sobre os processos criativos envolvidos na obra, assinale a alternativa correta.

a) A obra foi concebida apenas como produto de estúdio, sem intenção performática.

b) A performance ao vivo em espaços simbólicos é parte essencial do significado da canção.

c) A composição da faixa exclui elementos de oralidade e improvisação.

d) A participação de outros artistas é limitada a gravações de estúdio.
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10) A distribuição de "Principia" e do projeto AmarElo exemplifica uma nova lógica da produção cultural periférica. A atuação do selo Laboratório Fantasma e o uso das plataformas digitais reforçam a autonomia e o acesso popular à arte.
Sobre esse contexto de produção e circulação, é correto afirmar:

a) A canção é vinculada a uma grande gravadora, o que define sua estética comercial.

b) A obra foi concebida como jingle publicitário e adaptada para o álbum posteriormente.

Trata-se de produção autoral e independente, com circulação em múltiplas plataformas e articulação com o público.

d) O projeto teve alcance restrito por priorizar apenas meios tradicionais como rádio e televisão.
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11) O álbum AmarElo, lançado em 2019 por Emicida, é parte de um projeto maior que inclui documentário, podcasts, espetáculos ao vivo e outras formas de expressões artística e política. Nomeado pelo artista como "Experimento Social AmarElo", esse projeto busca provocar reflexão e transformação social por meio da arte. A canção "Principia", primeira faixa do álbum, inaugura esse percurso.

a) Analise de que forma "Principia" antecipa os temas centrais do projeto AmarElo, destacando ao menos dois desses temas na letra da canção.

b) Explique como o conceito de experimento social se manifesta na proposta de Emicida, considerando a articulação entre linguagem artística e engajamento coletivo.
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12) "Principia" apresenta um contraste temático entre denúncias das violências sofridas pela população negra e periférica e a valorização de sentimentos como amor, solidariedade e esperança. Essa tensão entre dor e afeto marca a canção em diversas camadas, entre elas: a lírica, a sonora e a simbólica.

a) Analise como essa dualidade se manifesta nos versos da canção, destacando imagens, metáforas ou sequências que evidenciem esse contraste.

b) Explique por que essa estratégia pode ser compreendida como uma forma de resistência poética e política.
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13. A canção "Principia" reúne vozes ligadas a diferentes tradições espirituais e culturais, como as Pastoras do Rosário (ligadas ao catolicismo negro e à ancestralidade afro-brasileira), Fabiana Cozza (com raízes no samba e na espiritualidade de matriz africana) e o pastor Henrique Vieira (ligado à teologia cristã progressista). Mais do que apenas somar timbres diferentes, essas vozes constroem uma atmosfera que articula espiritualidade, afeto e resistência.

a) Analise o papel simbólico das vozes convidadas na construção de um espaço ritual coletivo.

b) Explique como o ecumenismo poético proposto pela canção contribui para reforçar os valores de união e de reparação histórica.
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14. A canção "Principia" rompe com estruturas fixas da música popular ao adotar uma forma livre e meditativa. Não há refrãos repetidos em padrão tradicional, e a divisão em estrofes é substituída por blocos temáticos que se articulam por meio da progressão do discurso e da alternância de vozes. Ao longo da faixa, Emicida recorre a repetições, pausas, variações de velocidade e ênfase, criando uma construção poética marcada pela oralidade e pela prosódia.

a) Explique como a construção formal da música (fluidez, repetições, ausência de batida regular) contribui para criar uma atmosfera meditativa.

b) Analise o papel do ritmo e da prosódia no trecho "Vejo a vida passar num instante / Será tempo o bastante que
tenho pra viver?".
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15. "Principia" combina uma linguagem poética e filosófica com marcas da oralidade periférica. Além disso, sua circulação em plataformas digitais amplia o acesso à obra. Esses dois aspectos, linguagem e mídia, são essenciais para o impacto da canção.

a) Analise como a linguagem falada, com gírias, repetições e construções populares, constrói identidade e aproxima a obra de seu público.

b) Explique como o uso de plataformas digitais contribui para o alcance e o potencial educativo da canção.
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GABARITO: 1) B    2) A    3) C    4) D    5) b    6) C    7)C    8) A    9) B    10) C 

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